Sorriso largo...

terça-feira, 26 de março de 2013

Grandes romances e a mulher na literatura de cordel, 1º capítulo

Os grandes romances na literatura de cordel, pelo olhar dos valores veiculados, em especial à condição dos direitos da mulher

Já publicado no sitio CORDEL DE SAIA, ensaio mais genérico intitulado A produção feminina na literatura de cordel – um novo olhar. Agora, retomo os grandes romances, mas focada nos valores tradicionais veiculados, em especial àqueles que dizem respeito à condição da mulher, na trajetória da literatura oral. É peculiar observarmos que até os nossos dias ainda não se tenha legislação definida de proteção aos direitos da mulher. Li, recentemente, PARECER do Comité Económico e Social Europeu sobre a Erradicação da violência doméstica contra as mulheres (parecer de iniciativa) Relator: Mário Soares, apresentado em Bruxelas, 18 de setembro de 2012. Fiquei perplexa com os dados ali apresentados, especialmente por se referir a União Européia, Imagine, agora, a quantas andamos no Brasil?  Vamos, então, aos nossos romances.

Em linhas gerais os grandes romances poéticos seguem padrões similares aos romances em prosa, acompanhe alguns aspectos, como: critérios rigorosos de forma, conteúdo e apresentação.

            Forma
-        estabelecer nas primeiras estrofes, sempre em sextilhas, como sempre nos alertou Rodolfo Coelho Cavalcante e tantos outros poetas, o enunciado do tema que vão narrar;
-        explicitar o caminho de suas narrativas;
-        criar a expectativa para o “grande final” – se vitoriosos ou trágicos;
-        chamar a atenção do leitor para o processo narrativo (modalidade poética; metrificação; e formatação física): sextilhas, 7 sílabas, 32 páginas, tamanho 12 x 15cm; e,
-        cuidar bem da elaboração da capa; da seleção do título (o mais sugestivo que a imaginação do poeta lhe permitir), também são atributo essenciais ao sucesso do romance.

            Performance
-         o narrador-poeta é peça fundamental para obter a atenção do ouvinte-leitor – sua entonação, suas pausas propícias, estabelecem um clima de tensão, mantendo o ouvinte-leitor atento e curioso para o desfecho da narrativa. Os primeiros romances poéticos vindos de tradições orais, e como tal, eram  cantados e/ou declamados em praças, feiras e festas públicas. Destacando aí o importante papel do cantador, que de feira em feira, cidade em cidade, eram os responsáveis pela vendagem dos “romances”. Sobre a figura da cantador escrevi o poema O poeta e o folheteiro, 2012, publicado pela Cordelaria Manoel Monteiro, Campina Grande, Paraíba.

-        Venda: à época das grandes produções tipográficas, a conquista da venda, diferente dos romances em prosa, dependia da performance do cantador e/ou declamador. O desembaraço, a perspicácia e astúcia, eram fatores determinantes para garantir a boa vendagem.

Os romances são norteados por ingredientes comuns, tanto em prosa como em versos:

            Temas
-        o amor, encantamento e aventura, são os mais recorrentes e continuam a chamar a tenção do leitor, mesmo no dias atuais;
-        a figura da mulher é presença marcante em todos os romances e, vale a pena acompanhar sua trajetória. Escrevi o poema A mulher e sua trilha, ainda inédito.

Nos primeiros grandes romances a figura da mulher sempre esteve presente e apresentada sob vários pontos de vista:

-        a esposa-mãe, zelosa de seu marido e casamento e da guarda e educação dos filhos, esta foi a principal característica atribuída à mulher naqueles tempos, nos romances medievais, lá na Europa;
-        a mulher sob a ótica do divino: a virtude das santas, e das musas, a filha obediente e casta, acima qualquer suspeita de conduta (a pura e casta), a quem dirigem seus apelos pela capacidade de inspiração poética:

Manoel Camilo dos Santos, um de nossos grandes romancista inicia o romance com todos os apelos comuns aos grandes narradores. Veja em A rainha da floresta e a fera humana, (1958), todos estes ingredientes, fundamentais. Veja abaixo:

”Eu combinei com Apolo
Com Minerva e com Diana
Para escrever essa história
Que até o título é bacana
A rainha da floresta
Inclusive a fera humana.”

Segue deixando claros os papéis da mulher (esposa / filha / meretriz). Chama a atenção para as consequências do rompimento dos valores estabelecidos, seja por vontade própria seja por infortúnio (assalto, roubo, “sedução” ou outra agressão qualquer).

“(...)
A donzela que não desse
valor a honestidade
estragasse o seu papel
de pudor e castidade
tinha que ser castigada
com grande severidade

E quando uma dessa estava
esperando a descansar
assim, que focava boa
o rei mandava botar
o seu filhinho nas matas
p’ra qualquer fera devorar.

Dizia o rei: - eu não quero
geração de meretriz
sabemos que a má árvore
só dar o fruto infeliz
e o filho de bom casal
deixa a nação feliz.”

Estabelece aí a dicotomia do BEM e do MAL, de acordo com os valores morais e sociais vigentes.

Nas primeiras estrofes abaixo o poeta descreve reino em que há somente um herdeiro. Entretanto, acontece o imponderável para um reinado feliz: a morte súbita do rei, que deixa seu filho, Valdomiro, na orfandade:

“(...)
Quando o príncipe Valdomiro
Já contava nove anos
o sopro da desventura
veio perturbar seus planos
a desdita deu-lhe um beijo
com seus lábios desumanos

Veio a morte de surpresa
roubou-lhe a felicidade
matou seu querido pai
ainda na mocidade
envolvendo Valdomiro
no manto da orfandade”

À quinta página do folheto, como nos bons romances, o poeta faz uma pausa e... anuncia mudar de assunto, mudar o rumo da prosa. Este anúncio é mais um gancho a ser conectado mais à frente...Veja:

sábio rei
tinha sido condenada

A tal moça de quem falo
chamava-se Teodora
tinha dezenove anos
linda como a deusa Flora
porém, o seu sofrimento
se eu contar o leitor chora.

Foi vítima de sedução
de um malandro infiel
o qual retirou-se quando
manchou da jovem o papel
obrigando a miserável
beber a taça de fel.

Ela ocultou-se do povo
para não à ver talvez
mas coitada quando estava
nos atos da gravidez
o vassalo prendeu ela
com tamanha estupidez.

E disse para o carrasco:
quando ela descansar
não terá nem o direito
de ao filho amamentar
leve a criança p’ra mata
e lá é p’ra degolar.”

O leitor pode observar a dureza do tratamento impingido às mulheres que por vontade ou ingenuidade rompiam com os valores tradicionais.

A partir desse momento o poeta narra a morte da mãe, não socorrida e a entrega da criança sobrevivente ao carrasco, que, por pena, diante de sua beleza, não executa sua tarefa, ao contrário, a abandona no deserto... Neste deserto morava uma velha feiticeira, que viu um homem abandonar um embrulho e sair correndo...  A feiticeira desconfiou e... aproximando-se do local, encontra a criança! Toma para sim os cuidados e a batiza de Flor dos Campos e, informa:
“(...)
Assim foi ela crescendo
com seu gesto de princesa
só tendo sido a propósito
da Divina Natureza
que até Venus invejava
a sua grande beleza.”

Neste ponto nosso narrador retoma a história do reinado do principezinho Valdomiro. O rei, seu pai antes de morrer, encarregou um sábio amigo para conduzir o reinado até a maioridade do príncipe. Como em todo romance, o sábio torna-se um déspota, odiado por todos, que almejam vê-lo destronado.
“(...)
O leitor sabe que o rei
já próximo de ser finado
deixou um sábio na corte
como único encarregado
até quando o princepezinho
pudesse ser coroado

Com tantas idas e vindas, em meio aos assuntos que tocam a continuidade do romance. Na página 10 informa:
“(...)
Leitor aqui faço ponto
neste assunto e me retiro
porque me vejo obrigada
navegar em outro giro
irei falar um momento
sobre o príncipe Valdomiro”

A tal bruxa (figura esteriotipada da mulher fora dos padrões morais vigentes) também odiava o rei por ter mandado jogar nas matas a criança. Então, entendendo ser Valdomiro o mentor do feito, mandou sequestrá-lo e o transformou num monstro. Então nosso narrador insere mais ingredientes de magia e encantamento a sua narrativa.

O que permeia a narrativa?

-        valores do poder patriarcal, moral e repressivo;

-        a já citada esposa-mãe – voltada para a castidade do o lar, o marido e os afazeres domésticos            “Oh! Mulher, esposa e mãe”;

-        a mulher vinculada ao “mal”: a esposa adúltera, a filha desobediente e o conseqüente castigo: a expulsão do núcleo familiar e social para uma vida apontado como a “sina”, a “sorte” das serpentes do mal, em que só lhe cabia a prostituição, qualificada como, meretriz, ingrata e suja;

-        a mulher submetida às mais duras arbitrariedades e invasão de seu direito mais básico: a condição humana;

-        ela própria colocando-se na posição de infratora, transgressora, quando, na verdade lhe são tirados os direitos à educação, ao conhecimento, à informação, que lhes daria outra posição diante das “seduções”, de que são vítimas por ignorância. Este quadro de violência leva a mulher a reproduzi-lo, delegando à sorte, à sina, todo o repertório de violência a que é submetida. Observe:

“Foi vítima de sedução

E segue em sua culpabilidade:

“Ela ocultou-se do povo
para não à ver talvez”

Mais adiante o castigo emocional é ainda mais severo e drástico. Dela retira o direito ao afeto primordial – a amamentação

“E disse para o carrasco:
quando ela descansar
não terá nem o direito
de ao filho amamentar”

-        ainda a mulher marcada pela dicotomia do BEM X MAL – a ingenuidade seduzida, e a feiticeira, marcada por valores negativos, mas única capaz de rever o código moral vigente, pela sagacidade e magia;
-        a mulher como objeto de desejo e inspiração

“que até Venus invejava
a sua grande beleza


Somente a partir da década de 90 com a plena expansão da mulher como contribuinte social, seu papel torna-se mais ameno. Já neste momento com advento das grandes mídias da comunicação social, o espaço para a participação da mulher com personalidade “de ombro a ombro” com o homem, estes estigmas ficam de lado, mas... Nessa altura os grandes romances já deixam de ser produzido.

A proliferação das mídias tirou dos poetas o público leitor e ouvinte de romances, não valia mais a pena editá-los, os custos não compensavam. Ficamos assim com as composições de 8 e 18 páginas, voltando-se para os fatos cotidiano, as narrativas de contos e causos, que levam ao leitor a possibilidade de leitura rápida e também interessante face ao valor de cada poeta, homens  e mulheres.

E de tanto ler e trabalhar com a literatura de cordel fui agraciada com o Prêmio Mais Cultura, Edição Patativa do Assaré, 2010, com o folheto Catalogação de cordel, 2011

A combinação com os deuses lhe garante o sucesso. Clic ou copie o link para ler o folheto na íntegra.



Bibliografia:

C0805
Santos, Manoel Camilo dos. A rainha da floresta. Editor Proprietário: Manoel Camilo dos Santos. Campina Grande: A Estrella da Poesia, 1958. 32 p


C0554
Barros, Leandro Gomes de. Os martírios de Genoveva. Editores proprietários: Filhos de José Bernardo da Silva. Juazeiro do Norte: São Francisco, 1974. 48 p.

C6519
Pinto, Maria Rosário. Catalogação de cordel. Rio de Janeiro, RJ: Academia Brasileira de Literatura de Cordel, 2011. 16 p. 29 estrofes : sextilhas : 7 sílabas

C6849
Pinto, Maria Rosário. O poeta e o folheteiro: da edição à venda. Campina Grande, PB: Cordelaria Poeta Manoel Monteiro, 2012. 12 p. 26 estrofes : setilhas : 7 silabas

C6487
Catunda, Maria de Lourdes Aragão. Não deixe o homem bater, nem em seu atrevimento!. Rio de Janeiro, RJ: Academia Brasileira de Literatura de Cordel, 2011. 8 p. 13 estrofes : setilhas : 7 sílabas
http://www.docvirt.no-ip.com/asp/folclore.asp?bib=cordel&pasta=C6487

AGUARDE QUE PUBLICAREMOS NOVAS CURIOSIDADES SOBRE A EVOLUÇÃO DA LITERATURA ORAL PARA TEXTOS IMPRESSOS EM GRÁFICAS E/OU TIPOGRAFIA
Maria Rosário Pinto
Rio de Janeiro, março 2012.


3 comentários:

  1. Amei o post, RÔ! Bom saber que vc ainda está se dedicando ao blog. Não te liguei porque não quero te incomodar. Boa Páscoa procê, viu! Espero que este seja um tempo de restauração, reinvenção, de muita saúde e paz. bjs, Cynthia
    PS: Estamos todos com saudades de vc.

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  2. Nelcimá e Cynthia, muito obrigada pelo apoio e carinhos, beijinhos rosário

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